Entrevista Exclusiva com José Eduardo Cardozo: “O Impeachment de Dilma foi um golpe jurídico-parlamentar. Usamos a Constituição e a legislação como escudo contra o arbítrio"
José Eduardo Cardozo, ex-Ministro da Justiça e
Advogado-Geral da União durante o governo Dilma Rousseff, reflete em detalhes sobre o processo de defesa no impeachment da ex-presidenta. Citando artigos da lei, princípios constitucionais e seu vasto currículo, Cardozo argumenta que a destituição de Dilma foi uma fraude jurídica travestida de legalidade.
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Currículo completo de José Eduardo Cardozo
- Nome: José Eduardo Martins Cardozo
- Formação Acadêmica: Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Direito pela PUC-SP. Especialista em Filosofia do Direito.
- Carreira Acadêmica: Professor de Direito Administrativo e Constitucional na PUC-SP e na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).
- Carreira Política: Vereador na cidade de São Paulo (1989-1995). Deputado Federal pelo Partido dos Trabalhadores (1995-2011). Ministro da Justiça (2011-2016). Advogado-Geral da União (2016). Integrante da Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
- Principais Condecorações: Medalha da Ordem do Mérito da Defesa. Comenda da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho.
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1. Como o senhor construiu a defesa de Dilma Rousseff no processo de impeachment? Quais leis e artigos o senhor utilizou?
“A base jurídica de nossa defesa foi, antes de tudo, a Constituição Federal. Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade. A Constituição, no seu artigo 85, deixa claro que somente crimes de responsabilidade podem justificar o impeachment de um Presidente da República. Portanto, era fundamental mostrar que as chamadas ‘pedaladas fiscais’ e a edição de decretos de crédito suplementar não configuravam crime. Utilizamos, em nossa argumentação, o artigo 167 da Constituição Federal, que regula a emissão de créditos adicionais, e demonstramos que Dilma não havia ferido a Lei Orçamentária. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal, no artigo 36, fala sobre operações de crédito e limites impostos ao governo, mas o Tribunal de Contas da União (TCU) nunca havia tratado as práticas de Dilma como irregulares antes de 2015, quando a pressão política já era evidente. Além disso, recorremos à Lei 1.079 de 1950, que define o que são crimes de responsabilidade. Nossa defesa provou que não houve dolo, má-fé ou prejuízo ao erário público, o que afasta completamente qualquer alegação de crime de responsabilidade. A defesa foi ancorada em dois pilares: a ausência de qualquer crime e o uso político do processo para derrubar uma presidenta eleita democraticamente."
2. O senhor utilizou princípios constitucionais em sua defesa. Poderia falar sobre isso?
"Sim, a defesa de Dilma Rousseff foi, em grande parte, ancorada em princípios constitucionais. O princípio da legalidade foi um dos mais importantes, pois qualquer ação de um presidente deve estar pautada dentro dos limites legais. No caso de Dilma, todas as suas ações estavam dentro da legalidade, algo que deixamos claro em nossa defesa. A acusação de que ela teria ferido a Lei Orçamentária ou cometido irregularidades fiscais não encontrava respaldo nos fatos. O princípio do devido processo legal também foi evocado. A própria Constituição, no artigo 5º, inciso LIV, afirma que ninguém será privado de seus direitos sem o devido processo legal. Argumentamos que o processo de impeachment foi conduzido de maneira política, sem que houvesse uma base jurídica sólida, o que configura uma violação desse princípio. Por fim, invocamos o princípio da presunção de inocência. No Brasil, ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória, conforme o artigo 5º, inciso LVII da Constituição. Dilma foi julgada e condenada pelo Congresso Nacional antes mesmo de se demonstrar qualquer crime, o que fere frontalmente esse princípio."
3. Houve momentos em que o senhor percebeu que o processo tomaria um rumo político irreversível?
"Infelizmente, sim. A partir de certo ponto, tornou-se evidente que o julgamento político prevaleceria sobre a análise técnica. Quando o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aceitou a denúncia contra Dilma como retaliação ao PT por não apoiá-lo no Conselho de Ética, ficou claro que a questão deixara de ser jurídica. O processo de impeachment foi transformado em uma arma política, usada para derrubar uma presidenta que não tinha cometido crime algum. Na defesa, argumentamos reiteradamente que não havia prova de dolo, má-fé ou desrespeito às leis orçamentárias. No entanto, a atmosfera política que envolvia o país naquele momento, inflada pela Operação Lava Jato e pela crise econômica, acabou ofuscando qualquer possibilidade de uma decisão justa."
4. Como o senhor enxerga os excessos da Lava Jato e sua influência no impeachment?
“A Operação Lava Jato, apesar de ter começado com boas intenções no combate à corrupção, cometeu graves excessos que influenciaram diretamente o impeachment. O uso de prisões preventivas prolongadas, as delações premiadas obtidas sob pressão, e os vazamentos seletivos para a imprensa criaram um ambiente hostil contra o governo Dilma. Muitos dos aspectos da operação violaram princípios básicos do direito penal e processual, como a ampla defesa e o contraditório, previstos no artigo 5º, inciso LV da Constituição. Um dos pontos mais críticos da Lava Jato foi o seu uso político. As investigações contra o PT ganharam uma dimensão desproporcional, enquanto outras figuras políticas e partidos tiveram tratamento diferenciado. A imprensa, por sua vez, alimentava diariamente a narrativa de um governo corrupto, mesmo quando as investigações não envolviam diretamente a presidenta. Essa operação foi um instrumento de desestabilização política."
5. O senhor já mencionou que teria agido com firmeza caso houvesse uma tentativa de prisão de Dilma. Como seria essa atuação?
"Sem dúvida, eu teria adotado todas as medidas legais cabíveis para impedir uma arbitrariedade dessa natureza. A prisão de Dilma, se tivesse sido cogitada, seria a consumação de um golpe. Em um cenário como esse, teríamos utilizado todos os recursos jurídicos, tanto no Brasil quanto nos tribunais internacionais, para denunciar o abuso. A Constituição e o ordenamento jurídico brasileiro não permitem prisões arbitrárias, especialmente contra alguém que, como Dilma, não cometeu crime algum. Teríamos, certamente, recorrido ao Supremo Tribunal Federal, com base no artigo 102 da Constituição, que garante a jurisdição constitucional para impedir violações a direitos fundamentais. Além disso, buscaríamos medidas internacionais junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dado o caráter excepcional de uma prisão sem fundamento jurídico."
6. Para finalizar, o senhor poderia avaliar o impacto da defesa de Dilma na história?
"A história, eu creio, será justa com Dilma Rousseff. Embora o impeachment tenha ocorrido, nossa defesa demonstrou claramente que não havia base jurídica para a sua destituição. O tempo, a reflexão e o amadurecimento da sociedade nos mostrarão que o que ocorreu em 2016 foi um golpe parlamentar, disfarçado sob o manto da legalidade. Meu papel foi deixar esse registro para o futuro, e estou certo de que a verdade prevalecerá.
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José Eduardo Cardozo continua a ser uma voz firme na defesa da legalidade e do Estado Democrático de Direito. Seu papel na defesa de Dilma Rousseff não só evidenciou a fragilidade jurídica do processo de impeachment, como também expôs os abusos cometidos durante a Operação Lava Jato. Cardozo, com sua vasta experiência acadêmica e política, deixa um legado de luta contra arbitrariedades e em prol da justiça.
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